A pandemia da Covid-19 trouxe, de repente, uma nova realidade para todos. De uma hora para outra, pessoas foram orientadas a não circular pelas ruas livremente, lojas foram obrigadas a fechar suas portas e as empresas – que puderam continuar operando – tiveram que trocar a sede da organização pelo escritório improvisado em casa. O novo cenário, digno de uma obra de ficção, afetou tanto as organizações que se diziam digitalizadas como os setores mais robustos do mercado. Diante disso, o Instituto Startups e o JOTA, realizaram conjuntamente um debate virtual com representantes do ecossistema digital para avaliar os impactos das paralisações na agenda de inovação no segmento financeiro. O projeto contou ainda com apoio oficial da Associação Brasileira Online to Offline (ABO2O).
Após traçar um rápido panorama da evolução tecnológica nos últimos anos, durante a abertura, Marcos Carvalho, Head de Parcerias e Novos Projetos da ABO2O, afirmou que a crise atual torna clara o quanto o mercado vinha adiando um processo de digitalização mais intenso. “Até então, víamos empresas tradicionais reticentes quanto ao modelo de trabalho home office, outras segurando capital para investir no digital e em novas tecnologias. Enfim, elas perceberam que isso não é mais uma opção, mas uma necessidade diante de uma situação imposta”. Carvalho ainda destacou o aumento recente de competitividade no setor, que permitiu o amadurecimento do ecossistema e atualmente conta com um número superior a 600 Fintechs mapeadas.
O painel contou com a participação de lideranças do Banco Central, MovilePay, ABO2O e JL Rodrigues Carlos Átila & Associados. A mediação ficou por conta de Guilherme Pimenta, repórter do JOTA.
Fôlego financeiro
É fato que o cenário adverso tem causado impactos negativos na economia impondo inúmeros desafios ao sistema financeiro, mas é notório que o Banco Central tem atuado em diversas frentes para prover a liquidez que o mercado precisa. Inúmeras medidas foram anunciadas nos últimos dias: aumento da capacidade econômica para as fintechs de crédito, reclassificação do nível do risco das operações de crédito, repasse na cadeia de pagamentos com o ajuste da Lei 12.865, financiamento da folha salarial dos empresários, entre outras.

Segundo Mardilson Fernandes Queiroz, consultor do Departamento de Regulação do Sistema Financeiro do Banco Central, o órgão regulador está atento às demandas das instituições e envolvido em ações conjuntas com o Ministério da Economia para garantir que as fintechs continuem com acesso a recursos financeiros. “O atual cenário nos mostra que a digitalização de ativos, dos negócios e dos relacionamentos no âmbito do sistema financeiro e dos meios de pagamento é uma condição essencial para se alcançar um mercado mais aberto, integrado, tendo o cliente como o agente principal”.
“O atual cenário nos mostra que a digitalização de ativos, dos negócios e dos relacionamentos no âmbito do sistema financeiro e dos meios de pagamento é uma condição essencial para se alcançar um mercado mais aberto, integrado, tendo o cliente como o agente principal.”
Nem tão digitais assim

Se tem uma coisa que essa crise mostrou na opinião de Loise Nascimento, Head de Legal da MovilePay e líder do Comitê de Fintechs & Payments da ABO2O, é que muitas empresas perceberam que não eram tão digitalizadas quanto pensavam. “Mesmo quem tem modelos de negócios digitais, disruptivos, estão enfrentando desafios de adaptação. Grande parte do empresariado está vivendo e aprendendo agora o que é ser digital”, disse.
“Mesmo quem tem modelos de negócios digitais, disruptivos, estão enfrentando desafios de adaptação. Grande parte do empresariado está vivendo e aprendendo agora o que é ser digital.”
Para Vitor Magnani, presidente ABO2O e Head de Public Affairs da Loggi, o Brasil não está digitalizado em sua maioria. “O processo de transformação digital não é subir um site ou vender um produto pelo WhatsApp. Envolve uma mudança de comportamento, a forma como você opera no mundo físico”. Segundo ele, a sociedade como um todo está enfrentando desafios, porque está tendo que aprender em poucos dias uma jornada que levaria cerca de cinco anos.
Na visão de Magnani, o papel das instituições financeiras nesse momento é prover não apenas liquidez, mas um ambiente mais favorável à competitividade através da redução da burocracia para acelerar alguns processos e dar fôlego para as fintechs, especialmente as menores. “Muitas não conseguem escalar, porque o peso regulatório do sistema financeiro é enorme”, disse.
“O processo de transformação digital não é subir um site ou vender um produto pelo WhatsApp. Envolve uma mudança de comportamento, a forma como você opera no mundo físico.”
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Loise reforçou que agora é hora de motivar o crescimento dos pequenos e médios empresários que hoje são, segundo ela, o elo mais fraco da cadeia. “Eles têm pouco acesso ao crédito, grandes dificuldades de se organizar, misturam rendimentos. Temos que apoiar levando ferramentas e plataformas de inovação que oferecem algum tipo de ajuda”.
Infelizmente, as fintechs que procuram as instituições financeiras para viabilizar essa liquidez, já encontram dificuldades para ter acesso ao crédito. Loise afirma que a análise é um dificultador, pois para conceder o benefício será avaliada a saúde financeira da fintech daqui em diante. “Entre a liquidez de uma empresa mais sólida e uma que está entrando agora no mercado, provavelmente esta não terá prioridade”. Para o mercado de meios de pagamentos, disse ela, por mais que o Governo e o BC tenham anunciado uma série de medidas, não se vê muito acesso por parte das empresas.
Desafio para todos
Mardilson reiterou que, assim como todas as demais instituições, o Banco Central também foi pego de surpresa com essa crise. No entanto, ele reforçou que a agenda planejada para proporcionar esse ambiente mais competitivo para as fintechs não parou. “Esse novo processo pode ter afetado a produtividade temporariamente? Sim, mas nós também estamos nos adaptando a essa mudança. Estamos fazendo projetos, que levariam dois ou três anos, em um mês”.

O executivo deixou claro que o Banco Central não pode ser responsabilizado totalmente por todas as demoras relacionadas ao campo da inovação, porque este enfrenta os mesmos desafios que os demais. “Como foi dito, não vivemos em uma sociedade plenamente digital, mas estamos caminhando para isso. Aprendemos muitas coisas nos campos legais, operacionais, jurídicos, e a questão comportamental é um desafio para todos”.
Ele reforçou que as fintechs dentro do perímetro regulatório do BC estão recebendo suporte que podem apoiá-las em alguns aspectos. “Existem questões que o regulador não resolve, mas ajuda com os incentivos e os mecanismos que pode”. No entanto, a instituição se mostrou aberta para ouvir as demandas e discutir com as partes envolvidas nos fóruns apropriados e nos grupos de trabalhos criados.
O lado bom e o efeito rede

Para José Luiz Rodrigues, sócio titular da JL Rodrigues, Carlos Átila & Associados, é preciso não apenas observar os impactos negativos, mas os seus efeitos positivos. Segundo ele, a crise financeira de 2008, por exemplo, foi uma das responsáveis pelo avanço tecnológico dos últimos anos. “Naquela época, os bancos ficaram com medo, criou-se um gap de atendimento. E então, começaram a aparecer as startups, as fintechs, e a mudar o mercado. Saímos de um sistema financeiro de pouco acesso, caro, onde as pessoas tinham um problema de acessibilidade incrível para um modelo mais evoluído em vários aspectos”.
“Saímos de um sistema financeiro de pouco acesso, caro, onde as pessoas tinham um problema de acessibilidade incrível para um modelo mais evoluído em vários aspectos.”
Ultimamente, o que tem auxiliado o ecossistema a sobreviver é a parceria feita mesmo entre competidores. “Estamos vendo a concorrência como, de fato, um aliado. Por isso tem sido comum ver tanto anúncios de parcerias entre bancos grandes, fintechs. Mas essa parceria não é para concessão de crédito à fintech ou plataforma, e sim para um contexto maior”, disse Loise.

Um ponto bem importante que diferencia as fintechs, os marketplaces e outras plataformas digitais, nascidas no contexto de tecnologia, é que elas operam em rede, e não de maneira “departamentalizada”. “Existe um ecossistema conectado num marketplace como o iFood, assim como existe um ecossistema conectado ao Mercado Livre. Um não sobrevive sem o outro. Nesse sentido, as parcerias existem da necessidade de cada uma manter o seu próprio ecossistema”, explicou Vitor Magnani.
“O charme desse efeito rede é que o mundo digital está tornando inerente à sociedade. Imaginem quando tudo estiver integrado: token, DLT, Internet das Coisas, Inteligência Artificial, Open Banking, rede social financeira. Será um mundo que nem sabemos como se dará o equilíbrio desse negócio”, disse Mardilson. No entanto, ele pondera e explica que o efeito rede pode servir tanto para o bem quanto para o mal, porque da mesma forma que elas se auxiliam, também podem se prejudicar quando alguma tem um problema.
Uma coisa é fato: o sistema tradicional financeiro já aprendeu muito e vem aprendendo com as mudanças. Se antes via as fintechs como um competidor, hoje o vê como um parceiro (em muitos casos). “Ou você se adapta ou fica para trás. Este é um ótimo momento de tudo ser testado, de aprendizado, e tenho certeza que vamos sair dessa ainda melhores”, finaliza José Luiz Rodrigues.
Fonte: Instituto Startups