O aumento do número de pessoas que ingressaram no ciclo de compras digital em tempos de pandemia tem desencadeado uma série de pautas novas e debates urgentes, que vão desde protocolos de compra segura, incluindo delivery sem contato físico, até ações que tornam a jornada de compra do consumidor mais conveniente e positiva sob aspecto de experiência. Tudo para deixar mais à vontade o comprador que, em isolamento social, tem suas necessidades básicas virtualizadas e vive tempos de exceção.
Mariana Winter, gerente de Estratégias & Parcerias da Associação Brasileira Online to Offline (ABO2O), abriu o encontro comitê e ressaltou a importancia da agenda de iniciativas voltadas para o Direito do Consumidor: “temos abordado tanto aspectos estratégicos quanto os legais e jurídicos buscando dar uma visão ampla e concreta dos desafios que o mercado está enfrentando aos nossos associados”.
O anfitrião do encontro virtual, Demevir Siqueira, líder do Comitê de Customer Experience, que também assina como Customer Success do Zoom & Buscapé, pontuou os desafios da atual conjuntura que envolve o setor: “vivemos o aumento de volume de pedidos X volume de problemas e estamos diante da factual Decreto 10.417/2020, que recriou em 07 de julho, o Conselho Nacional do Direito do Consumidor, extinto em 1990. Pensando no papel representativo ABO2O, entidade sem fins lucrativos voltada para políticas setoriais da economia digital, que tem como vertical o Customer Experience, sempre em busca de melhorar a jornada do cliente e prestes a contribuir com ideias, sugestões e pautas participativas dentro desse Conselho na esfera federal, convidamos duas feras em aspectos legais para nos ajudar a entender as melhores alternativas para atendermos o consumidor do “novo normal”, diz a liderança, em alusão ao público, agora mais heterogêneo, não totalmente familiarizado com o mundo online.
Dividindo a tela: conhecimento de causa e cenário
A palestra deu a palavra à experts em relações de consumo de uma organização de serviços jurídicos, líder na América Latina, TozziniFreire Advogados, em simbiose com a dinâmica de plataformas digitais e do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que nesse ano completa três décadas. Para apresentar o atual cenário jurídico que envolve a jornada do cliente em meio à crise, duas experts do escritório, especializado no assunto, palestraram sobre o tema: “Direito do Consumidor diante do cenário de aumento do comércio eletrônico“.
Patrícia Martins, sócia do TozziniFreire, abriu a conversa com os associados e contextualizou: “Estou no escritório desde 1997, época em que o Código de Defesa do Consumidor, que é uma lei de 90, começou a pegar. O Brasil tem essa história de Lei que pega e Lei que não pega. O Código de Defesa do Consumidor foi uma lei que pegou. Entre meados de 96 e 97, o mercado jurídico sentiu necessidade de estruturação dessa área e se dividiu; entre advogados que representam consumidores e os que representam empresas. Nós representamos empresas e fornecedores, mas, após mais de duas décadas trabalhando com direito do consumidor, digo que nosso grande papel é demonstrar às autoridades de consumo e ao judiciário que há uma necessidade de harmonia dessa relação: não é o grande contra o pequeno, o bom contra o mal, o fornecedor contra o consumidor. Ao contrário, fornecedor e consumidor precisam caminhar de mãos dadas. Juntos, para poder construir um ambiente propicio aos desenvolvimentos econômico e tecnológico; igualmente favorável à defesa e proteção dos direitos dos consumidores”.
E complementa, “A gente fala recorrentemente aos nossos interlocutores, juízes e representantes das autoridades de consumo, como PROCON SP e Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon): nossos clientes precisam do consumidor, que é a razão de ser da empresa. Olhamos o Código de Defesa do Consumidor e buscamos harmonia e compatibilização de interesses. Antagonizar a discussão é começar com o pé esquerdo qualquer temática de direito do consumidor”, pondera a sócia do TozziniFreire Advogados. Sob esse espírito, falou sobre como autoridades de consumo, tendo em vista que o mercado consumidor sofreu mudanças na pandemia modificou seu entendimento que influenciará suas agendas em futuro próximo.
A apresentação, destaca, além de dados, iniciativas legislativas que surgiram ou se intensificaram no contexto de pandemia. Luciana Bazan, Especialista e Sênior da TozziniFreire, explica: “Tivemos um Projeto de Lei do Senado, agora Lei sancionada (14.010/2020) que fala do regime jurídico emergencial e transitório das relações de direito privado em relação ao direito do consumidor; sob dois pontos; a suspensão do direito de arrependimento previsto no Código de Defesa do Consumidor, no caso de produtos perecíveis obtidos via delivery que gerou muitas discussões durante a pandemia, e a dificuldade de de manifestação do direito de arrependimento devido ao isolamento social. Esse tema também é objeto da PL 2242/2020, que pretende alterar o prazo do CDC de 7 dias de arrependimento para 10 dias”.
Há PLs propostos mas ainda não votados; com um percurso a percorrer antes de se tornarem Lei ou não. “O PL 617/2020 aguarda despacho do Presidente na Câmara dos Deputados e trata da relação dos direitos dos consumidores sobre aplicativos e portais de internet, alicerçado em dois pilares: o primeiro é a questão da responsabilidade solidária dos aplicativos e portais de internet por toda a cadeia de fornecimento daquele produto ou serviço (desde o anúncio, transação até a qualidade do serviço / produto e a entrega). Já o segundo, é a ideia de criação impositiva de canal de atendimento e suporte para reclamações dos consumidores; reforça o ponto de atenção das autoridades nesse período de pandemia voltado à criação de canais de comunicação entre fornecedores e consumidores”, explica Bazan.
O PL 103/2020 visa a instituição obrigatória de um SAC; um Serviço de Atendimento ao Consumidor para os serviços prestados via aplicativos ou sites. “Hoje o decreto do SAC (Lei do SAC) não obriga a criação desses canais por empresas que não estejam dentro de setores regulados; e-commerces, portanto, estariam fora dessa obrigatoriedade. No entanto o decreto antigo, de 2008, dá margem a um movimento de revisão encabeçado, especialmente, pela Senacon, que trata dessa pauta como prioridade na agenda sinalizando que tende à revisão para incluir e-commerces no SAC obrigatório e até criar plataformas online de soluções alternativas de conflito dentro da entidade, mediante arbitragem ou mediação. Tudo para afastar o consumidor do ingresso no judiciário”, complementa Luciana.
Até os últimos anteciparam o futuro; temos 4 setores vencedores dos novos tempos
Para guiar o papo e reforçar a disponibilidade de orientar e trocar informações, a advogada à frente da TozziniFreire Advogados compartilhou o cenário: ”a gente teve um momento de alteração de mercado a partir de março. Poderíamos falar um bom tempo só de números, dados e fatos em razão dessa mudança, mas o importante aqui é nortear o raciocínio; a economia digital passou a ter um protagonismo no mercado de consumo brasileiro com aumento expressivo de aquisições feitas pela internet”, direciona Patrícia Martins.
Olhando casas à frente no tabuleiro mundial, Patrícia aponta: “os Late Adopters (últimos a experimentarem soluções tecnológicas inovadoras) tiveram que se adaptar à digitalização imposta”, afirma referindo-se à pesquisa da consultoria Inovasia, feita na China, País com uma das mais altas taxas de penetração no comércio online do mundo, publicada em julho desse ano na mídia de negócios exame.com, que informa: “cerca de 56 milhões de chineses que não compravam online antes da pandemia elevaram para 78,8% a parcela da população que faz aquisições pela internet regularmente (em março). Em dezembro do ano passado esse número era de 74,8 %, (de acordo com dados do Stadista citados no estudo).
Além disso, o estudo na China, único País, atualmente, em condição de avaliar mudanças meses após o cenário pós-pandemia, revela mais: consumidores do “novo tempo” estão mais exigentes: querem entregas ágeis (até 1 hora), pequenas comodidades diárias e buscam mais saúde e origem de produtos e serviços. Antenada às mídias internacionais e movimentação de players, Patrícia traz a apuração que indica os quatro setores que serão os motores da economia que ganham tração por conta da pandemia daqui em diante: “o Financial Times entendeu que são quatro vencedores (four winners): indústria farmacêutica, por razões óbvias (busca de antivirais específicos, vacinas, etc). Games porque as pessoas estão encontrando novas formas de entretenimento, cloud porque todas as nossas ações foram virtualizadas e precisamos armazenar tudo isso. O e-commerce fecha a lista e nos mostra que realmente está potente”.
Por que plataformas enfrentam duas pandemias de uma vez?
Duas razões são identificadas para aumento de questionamentos de consumidores: mais aquisições online é uma delas (com mais consumidores no ciclo digital é natural que haja um percentual maior de questionamentos e reclamações). A outra é a falta de familiaridade de muitos brasileiros com processos de compra remota”, explica Patrícia Martins. A alteração de comportamento social lança o olhar das autoridades de consumo, em 3 vertentes; “a primeira é um espécie de pandemia legislativa. Temos um código principiológico que funcionava há 30 anos e, na minha opinião, ainda funciona. É preciso interpretá-lo de acordo com fatos atuais do cenário econômico. A despeito disso, cresce a atividade legislativa buscando regular a economia digital. A segunda vertente, liderada pela Senacon, pleiteia como melhor saída para relações de consumo a Autorregulação Regulada (o setor faz seu pacto e as autoridades fiscalizam e punem descumprimentos). A terceira é a resolução de conflitos de consumo de forma alternativa; envolvendo tecnologia, plataformas online para essa finalidade e métodos alternativos; apoiada pelo fato de o judiciário estar obrecarregado. Reclamações de consumidores correspondem à grande parte dos processos entrantes”, elenca Martins.
Sobre a pandemia legislativa, a advogada Sênior Luciana Bazan situa: “a crise sanitária levou autoridades a pensar em possíveis soluções para problemas: surgidos ou intensificados pelo contexto pós-Covid-19. Uma das frentes veio das iniciativas legislativas que surgiram, tanto em âmbito federal, quanto nas esferas locais e geram preocupações; pelo conteúdo, quantidade e teor. A Constituição Federal traz uma competência concorrente entre os entes federativos para legislar sobre o direto do consumidor; o que faz crescer o bolo de Projetos de Lei. Muitos apresentam soluções contraditórias entre si ao tratar de uma mesma matéria”. Martins enfatiza: “em nosso país, culturalmente, achamos que o Estado precisa regular o mercado; ser maior do que, talvez, ele, de fato, precise ser”. Empresas que atuam nacionalmente tendem a ficar rendidas em meio a uma série de regulamentos completamente diferentes. “É preocupante. Muitos PLs chegam em socorro de algo que sequer demandaria intervenção; pois a relação jurídica já estava suficientemente regulada ou porque já há solução entre as partes. Pandemia legislativa faz jus à crescente movimentação regulatória de forma desregulada, dsesenfreada”, comenta Bazan.
“Gosto do freguês”
“Um exemplo do que a Senacon pretende diz respeito à questão dos marketplces, conforme nota técnica que emitiu dizendo: o marketplace tem responsabilidade pela oferta e comercialização de produtos falsificados. Estudo empresas de aplicação de internet há anos e a TozziniFreire Advogados tem ação intensa ligada ao Marco Civil da Internet. Para mim, esse olhar da Senacon vem de uma interpretação antiquada do Código de Defesa do Consumidor. Depois de 30 anos de Lei é preciso entender que existe um novo ator nessa relação de consumo; justamente o marketplace. Em 90, o Código tinha uma realidade fática que envolvia dois atores, o fornecedor de um lado e o consumidor de outro, sendo que o fornecedor podia atuar em cadeia ou não. O marketplace, que é um conceito não escrito no Código. É um intermediário que não tem a ingerência premente da sua plataforma referente à oferta e comercialização de produtos. Em 2014 o marco regulatório da internet reforçou a ausência de responsabilidade do intermediário, salvo se descumprisse ordem judicial” defende Martins.
À pergunta final de Demevir Siqueira sobre a previsão de operação do Conselho Nacional de Direito do Consumidor, a especialista Luciana Bazan informou: não há expectativa de data, mas para não perder o timing do Decreto que evoca espírito de harmonização e conciliador de conflitos, deve ser em breve. Patrícia destacou uma questão que está no Conselho, devido à ampla aplicação e discussão; os métodos alternativos de resolução de conflitos no âmbito das relações de consumo. Ela também esclareceu sobre os requisitos que levam à polêmica obrigatoriedade do ingresso de empresas (que antes do decreto de portaria em 01 de abril de 2020 era voluntário) na consumidor.Gov (plataforma da Senacon), para que o consumidor possa sanar problemas antes de ir ao judiciário. A advogada assegura que, de acordo com posicionamento formal da entidade, os requisitos do texto, que traz a expressão “ou”, não são alternativos, mas, sim, cumulativos: ter 100 milhões de faturamento bruto, mais de 1000 reclamações e mais de 500 processos judiciais. É possível pedir a dispensa do cadastro, mesmo sendo obrigatório, mas a advogada conta que a entidade não vem digerindo bem justificativas para a recusa e é categórica: “o melhor combo para o consumidor é informação e suporte”, finaliza Patrícia.