O que o decreto do SAC nos ensina sobre evolução do atendimento ao cliente

Em abril, o governo federal aprovou um novo decreto do SAC, desta vez mais resolutivo e digital. A existência traz reflexões importantes, inclusive se precisamos de uma regra para o atendimento ao cliente nos dias de hoje

 

Atender bem o cliente é algo que transcende a ideia de contratar uma pessoa com alguma empatia e colocá-la em uma baia para atender telefonemas. Aliás, convenhamos, já não é assim faz algum tempo.

Um dos motivos para essa complexidade é a quantidade de leis que regulam o atendimento ao cliente no País. Um exemplo é o decreto do SAC, que, entre outras coisas, exige que empresas atendam o consumidor em até um minuto. Parece fácil, mas imagine uma empresa de telecomunicação com dezenas de milhões de clientes e que pedem praticamente ao mesmo tempo uma segunda via de um boleto, reclamam de um sinal de  internet ou dizem que o telefone simplesmente não funciona.

Agora, todas essas mesmas demandas estão aparecendo em outros canais digitais, caso do WhatsApp, chat e redes sociais. Ou seja, nada é tão complexo que não possa piorar. E vai.

Em outubro deste ano teremos um novo decreto do SAC. A norma apresenta diversas novidades – e falaremos sobre elas mais adiante – e vai resultar em uma inevitável camada de incerteza no mundo corporativo sobre novos custos e novas estratégias.

Alguns desses temas foram discutidos em um intenso webinar com o título “O novo decreto do SAC: legislação e resolutividade na jornada 4.0”, que contou com as organizações e apoios da ABO2O (Associação Brasileira Online to Offline), a FecomercioSP, o IPS Consumo, o Grupo Innovation Experience e a revista Inovativos.

Menos dinheiro, mais exigentes: é o novo consumidor

Todas as mudanças previstas no novo decreto do SAC representam os novos tempos do consumo a partir da intensa transformação digital ainda em curso.

Até pouco tempo, dar uma satisfação para o cliente sobre o desenvolvimento de um produto ou serviço era uma exceção à regra. A companhia simplesmente pagava por um espaço publicitário e aguardava o dinheiro do cliente. No fim, o consumidor aceitava o que era oferecido sem fazer objeções.

Com a digitalização das comunicações, o consumidor mudou. Ele passou a usar a internet como instrumento de compreensão de direitos, deveres e buscou entender o desenvolvimento de produtos e serviços. O passo seguinte foi questionar as empresas.

Esse empoderamento do consumidor recebeu alguns impulsos importantes. Um deles, lembra Thiago Quintino, diretor executivo na FastShop e Founder do WCES (escola de CX), foi gerado a partir da crise no crédito imobiliário norte-americano, em 2008.

“Simplesmente acabou o dinheiro das pessoas e precisávamos ter opções de escolhas. Não é à toa que vemos a classe média no Brasil realizando compras de produtos premium. Não existe outro dinheiro. Ele tem que ir ao produto certo, pois não pode arriscar”, afirma Quintino.

Além da crise de 2008, o aumento da concorrência entre empresas e a pandemia do novo coronavírus também tornaram o consumidor mais crítico e cético quando o assunto é consumo.

Um dos primeiros reflexos legais desse empoderamento surge ainda nos anos 1990, com o surgimento do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que é o nosso parâmetro mínimo nacional para uma boa relação de consumo. Depois veio a primeira versão do decreto do SAC, em 2008.

“Sabe por que fizemos o primeiro decreto? Na época, fizemos uma pesquisa a partir dos dados das reclamações registradas nos Procons e descobrimos que 65% das queixas poderiam ter sido resolvidas com um telefonema do Procon na empresa. Ou seja, bastava o Procon abrir processo, aplicar uma multa e a empresa resolvia. Poxa, se o órgão público, com um telefonema, resolve o problema, por que o consumidor não poderia fazer o mesmo?”, explica Juliana Pereira, presidente do IPSConsumo e que foi a secretária nacional do Consumidor que liderou e aprovou a primeira versão do decreto.

A lei foi importante por vários motivos, mas um deles é apontado como essencial, segundo Vitor Andrade, professor da PUC-SP e sócio da Morais Andrade Advogados. “O primeiro decreto surgiu para dar acessibilidade a SAC. Em 2008 a grande discussão era: as pessoas não conseguiam acessar as áreas de atendimento”, lembra.

“Eu não sou entusiasta de uma lei para o atendimento. Aliás, acho absurda a ideia de uma lei para fazer o mínimo, porém precisamos reconhecer que ela se fez necessária dentro de um contexto. Tínhamos que colocar padrões mínimos. Foi algo infantilizado, de pegar na mão e mandar fazer algo, mas foi importante.”, afirma Rodrigo Tavares – VP de Customer Experience da RecargaPay e Líder do Comitê ABO2O.

E o que aconteceu após o decreto?

O decreto não foi apenas o marco zero do atendimento ao cliente no país. Ele ajudou a entender as expectativas de consumidores e fornecedores.

Como negócio, a norma estimulou a criação de gigantescos departamentos de atendimento ao cliente, com dezenas de milhares de atendentes atuando para uma única empresa. Somente a operadora Vivo possui mais de 15 mil atendentes, entre contratados e terceirizados.O mesmo aconteceu em outros setores regulados da economia (bancos, telecomunicações e outros) atingidos pela norma.

Hoje, existe um padrão mínimo de relacionamento com o consumidor que surgiu principalmente por causa do decreto. No entanto, isso não significa que todos os problemas dos consumidores foram resolvidos a partir da norma. Hoje, o mau atendimento é uma queixa comum nos órgãos de defesa dos consumidores.

Dados do último boletim Consumidor em Números, de 2021, produzido pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), mostram que as queixas contra os SACs representam 19,1% do total de 1,8 milhão de reclamações feitas nos mais de 900 Procons de todo o País no ano passado. Ele foi o terceiro maior motivo de reclamação do consumidor.

Um dos motivos para a má prestação de serviço do SAC talvez esteja no próprio decreto, que, no fundo, transformou o SAC em uma corrida contra o tempo para que empresas cumprissem a regra do atendimento em até 1 minuto.

O novo decreto

Com o novo decreto, a regra do minuto foi excluída. Agora, o objetivo é a resolutividade da demanda do consumidor.

Mas existem outras novidades. Por exemplo, a lei exige que as empresas cumpram, no mínimo, oito horas de atendimento no SAC telefônico. No decreto anterior, a norma exigia um atendimento 24 horas por dia, sete dias por semana.

Aliás, a própria definição de SAC mudou. Agora, o seu conceito fala em canais integrados, o que lembra a ideia de omnicanalidade que os setores de atendimento conhecem bem.

“Temos ainda possibilidade de uma análise cada vez mais nichada por setor regulado. As agências reguladoras ganharam a possibilidade de regular no detalhe cada item em questão de atendimento. Vamos ainda ter um indicador de solução, que vai ser desenvolvido pela Senacon”, explica Vitor Morais.

No entanto, a existência de um novo decreto inevitavelmente levanta uma série de reflexões, complementa Morais. Uma delas é se realmente existiria a necessidade de uma lei para falar de atendimento ao cliente nos dias de hoje. Ou seja, se o decreto do SAC não existisse, as empresas não atenderiam o cliente?

Mais: será que a criação de uma nova regra geral não seria prejudicial para a construção de um relacionamento cada vez mais individualizado, algo que empresas buscam para os seus clientes? Por outro lado, a nova regulação no atendimento não seria uma garantia de continuidade de evolução no relacionamento, algo que começou no primeiro decreto de 2008?

“Vivemos em uma sociedade da hiper transparência, ou seja, o consumidor coloca a boca no trombone. Nesse sentido, a questão é: faz sentido a gente chegar no nível de regulação que a gente trata da operação de atendimento ao consumidor? Não seria mais fácil colocar um índice de solução dos problemas e parametrizar o que teremos ou não do que entrar no detalhe do atendimento?”, afirma Vitor Magnani, presidente da ABO2O e do CEDI da FecomercioSP.

Valores maiores que regras?

Muitas dessas reflexões podem ou não se materializar a partir do início do novo decreto. Até novos problemas podem surgir.

Tem gente, por exemplo, que defende a tese que iremos desenvolver companhias cada vez mais orientadas ao consumidor. É possível que surjam empresas Business to Experience (BX), uma expressão recente cunhada pela consultoria Accenture e que seria uma evolução do customer experience.

“O atendimento não é só SAC. Ele também se faz na concepção do produto. Eu vou desenhar um produto ou serviço para atender uma demanda do cliente, mas também preciso oferecer uma comunicação clara e uma escuta ativa ao longo da jornada”, explica Tavares.

O próprio empoderamento do consumidor vai mudar e, segundo Juliana Pereira, será ainda mais marcante para o cotidiano das empresas. “Eu vou dizer uma coisa: daqui para frente só vai piorar. O empoderamento veio para ficar e só vai crescer. A nova geração abandona uma compra, muda de marca ou define o que é ultrapassado com um clique. Esqueça o atendimento e a publicidade. É relacionamento a partir de agora”, explica.

Nesse novo paradigma de uma relação de consumo, os valores basilares de um SAC devem ir além da acessibilidade. Ele também será resolutivo, entre outros.

“Nós, como empresas, temos esse problema: não somos honestos intelectualmente com os nossos consumidores muitas vezes. E muitas vezes o próprio consumidor não é. Aqui nos EUA o princípio da boa-fé é muito forte e acredito que será assim no Brasil.”, explica Quintino, da WCES.

“Penso que o CX cabe dentro do conceito de ecossistema, palavra importada das ciências biológicas. O nosso corpo humano é um ecossistema, ou seja, são órgãos interdependentes. Experimenta tirar o seu coração para ver se os outros órgãos vão funcionar. Essa interdependência entre a empresa, consumidores e outros que compõem o seu negócio, é essencial. Precisamos trocar informações uns com os outros para manter essa sustentabilidade do seu ecossistema de negócios”, conclui Magnani.

 

 


Assista ao painel na íntegra ou ouça o podcast

 

 

 

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